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AUGUSTO DE ANDRADE.: “Quando se cogitar de uma antropologia minuciosa das reações masculinas, o acaso de alguns encontros provavelmente passará a merecer a mesma atenção que certos botanistas dedicam ao cruzamento de determinadas orquídeas. Afinal, sob circunstâncias específicas, admirar por momentos alguém pode nos confirmar como nem sempre a beleza é um conforto — na maioria das vezes, sua revelação tem a força de um escândalo ou um choque. Certas presenças são como um buquê; a leveza de seu perfume transforma o que parecia uma simples oportunidade nas leis secretas de um destino. A experiência pode ser perturbadora; há vários motivos que determinam o sabor desse efeito.
A história é longa, me obriga a certa digressão e começa com Baudelaire. Um dos sonetos mais famosos de seu livro de poemas descreve seu encontro com uma desconhecida, vislumbrada por acaso entre a multidão, numa rua de Paris. Seu título, A uma Passante, é, ao mesmo tempo, uma definição e uma dedicatória, ambas discretamente desencantadas. Quando Baudelaire a descobriu, alta, magra, intangível, o rosto encoberto por um véu escuro como uma rainha de luto, ‘majestosa na dor’ e com suas ‘pernas de estátua’, é bem possível que tenha se convencido, mais uma vez, como todo paraíso é mesmo sempre artificial. A menos, talvez, quando seus artifícios sejam os da poesia: nada, no fundo, é tão pouco nosso quanto nossos sentimentos — especialmente os mais íntimos. Tudo o que sentimos nos vem da história, não do coração. São sentimentos raramente fáceis: bons poetas, para nossa sorte, os revelam; grandes poetas os inventam. Os primeiros nos surpreendem; os segundos nos transformam. Baudelaire era um grande poeta e, provavelmente sem saber, tinha acabado de inventar um estilo de patologia que, com o tempo, ganharia os contornos de uma tradição: hoje, para nós, um rosto desconhecido pode ser uma paisagem, uma promessa ou um trauma. As conseqüências desse encontro frustrado determinaram definitivamente o código de nossas paixões; estamos sempre muito próximos de Baudelaire e do século 19 que de Marilyn Manson e Abbas Kiarostami.”
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ANA CRISTINA CÉSAR.: "Um Beijo que tivesse um blue. Isto é imitasse feliz a delicadeza, a sua, assim como um tropeço que mergulha surdamente no reino expresso do prazer. Espio sem um ai as evoluções do teu confronto à minha sombra desde a escolha debruçada no menu; um peixe grelhado um namorado uma água sem gás de decolagem: leitor embevecido talvez ensurdecido "ao sucesso" diria meu censor "à escuta" diria meu amor".


"Devagar escreva uma primeira letra. escrava nas imediações construídas pelos furacões; Devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca, aberto sobre os vendavais; Devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés; Devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais; Devagar peça mais e mais e mais..."


" (...) Você anda um pouco na frente. Penso que sou mais nova do que sou. Bem nova. Estamos deitados. Você acorda correndo. Sonhei outra vez com a mesma coisa. Estamos pensando. Na mesma ordem de coisas. Não, não na mesma ordem de coisas. É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde). Quando a memória está útil. Usa. Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Então está. Não insisto mais."
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RUBEM BRAGA.: “Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.
Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.
Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.
Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.
Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.
Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.
Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.”
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